Para a generalidade dos estudantes, o recomeço das actividades lectivas, após o período das férias de verão, é sempre penoso. Para António nunca o foi. Apreciava os últimos dias dos anos lectivos, entre a realização do último exame e a publicação das notas, quando a sensação de “dever cumprido” e a paz e o sossego que reinava no seu instituto quase deserto geravam um agradável sentimento de libertação. Venerava os dias que antecediam o início do ano lectivo, quando a preparação de todas as tarefas era feita em marcha lenta, tempo livre abundava e Coimbra voltava a encher-se de vida.
De todos os início de ano, o que foi o mais
memorável foi o do seu 2º ano, em que o tempo livre prolongou-se pelo mês de
Novembro a dentro, devido à uma tardia colocação de muitos professores, e foi o
último que teve o privilégio de partilhar com dois grandes camaradas que iriam
concluir os seus cursos, passados alguns meses depois. Assim, o maravilhoso
outono coimbrão, com o mágico cair das folhas e o arrefecimento gradual da
temperatura, misturou-se com a atmosfera mítica do companheirismo académico e a
cumplicidade própria dos verdes anos e formou-se um inesquecível clima de
aconchego mútuo, onde os eventos mais simples, do ritual do café após às
refeições à ida aos bailes e convívios, eram vividos intensamente e de forma
única.
Desta época, um dos acontecimentos que António
recorda-se frequentemente é o aniversário do amigo Videira, que se comemorou
num domingo de outubro de 1989, em que meia dúzia de companheiros, do ISEC e da
FCTUC, rumavam para o “Ágora” e que em plena rua da Sofia encontram-se,
acidentalmente, com meia dúzia de companheiras, estudantes da FLUC e da FDUC,
que também iam comemorar o aniversário de uma delas e que após uma breve
abordagem e um ainda mais breve convite, acederam a comemorarem os dois eventos
em comum. Aquela dúzia de jovens que na flor da vida se juntaram para
comemorarem dois aniversários em comunidade, ou melhor, em fraternidade, nunca
imaginaram que iriam transformar aquele evento banal num acontecimento
transcendental, que ficou registado nos anais das suas histórias pessoais.
Objectivamente, o “Ágora” era um espaço situado
na baixa de Coimbra que pertencia a uma cooperativa de ensino artístico, em
que, para além de ser uma galeria onde os alunos expunham as suas obras, possuía
uma grande área de convívio aberta a todos e um pequeno bar ou cafetaria. Na
realidade, o “Ágora” era um daqueles locais dignos de fazerem parte das esferas
dos sonhos. A mística deste espaço devia-se às pessoas e aos seus feitos e
tornava estes mesmos feitos, por mais banais que fossem, em eventos único,
inesquecíveis, míticos.
Naquela chuvosa noite de outubro, doze jovens
festejaram uma celebração conjunta de dois aniversários de uma forma única e
inesquecível. Misturou-se seis vozes rudes e desafinadas com seis vozes
cristalinas dos seis anjos femininos, cantando várias melodias ao som de um
violão tocado por uma bela venezuelana do curso de Direito, conseguindo-se
assim uma polifonia de três continentes, tornando possível naquele pequeno
lapso temporal a tão desejada fraternidade universal, que só está ao alcance de
quem está na primavera das suas vidas. O que se passou a seguir, quando saíram
do “Ágora”, pertence à esfera privada e ficará na memória de cada um daqueles
doze até ao fim da vida.
Passados quase vinte e cinco anos, numa bonita
noite de verão, esta recordação desabou, mais uma vez, na memória de António.
Estava a fumar um cigarro e a admirar as estrelas, muito longe de Coimbra e
muito distante daqueles bons tempos, mas voltou a sentir a chuva a cair, voltou
a sentir o aconchego do “Ágora”, sentiu-se rodeado daqueles seis amigos de
sempre e dos seis anjos que surgiram das nuvens. Mais uma vez sentiu o calor
humano daquela época, mais uma vez ouviu as mesmas melodias, cantadas pelo
mesmo coro angelical. Regressou ao tempo do idealismo da liberdade, igualdade e
fraternidade, que é próprio dos verdes anos e propício em lugares míticos como
Coimbra. O cigarro apagou-se. António retornou ao presente, mas continuou a
venerar as estrelas. O presente vive-se e ao passado presta-se culto. Acende
mais um cigarro, continua a venerar as estrelas e a recordar o passado, uma vez
mais.