terça-feira, 26 de agosto de 2014

A Noite do Ágora

Para a generalidade dos estudantes, o recomeço das actividades lectivas, após o período das férias de verão, é sempre penoso. Para António nunca o foi. Apreciava os últimos dias dos anos lectivos, entre a realização do último exame e a publicação das notas, quando a sensação de “dever cumprido” e a paz e o sossego que reinava no seu instituto quase deserto geravam um agradável sentimento de libertação. Venerava os dias que antecediam o início do ano lectivo, quando a preparação de todas as tarefas era feita em marcha lenta, tempo livre abundava e Coimbra voltava a encher-se de vida.

De todos os início de ano, o que foi o mais memorável foi o do seu 2º ano, em que o tempo livre prolongou-se pelo mês de Novembro a dentro, devido à uma tardia colocação de muitos professores, e foi o último que teve o privilégio de partilhar com dois grandes camaradas que iriam concluir os seus cursos, passados alguns meses depois. Assim, o maravilhoso outono coimbrão, com o mágico cair das folhas e o arrefecimento gradual da temperatura, misturou-se com a atmosfera mítica do companheirismo académico e a cumplicidade própria dos verdes anos e formou-se um inesquecível clima de aconchego mútuo, onde os eventos mais simples, do ritual do café após às refeições à ida aos bailes e convívios, eram vividos intensamente e de forma única.
Desta época, um dos acontecimentos que António recorda-se frequentemente é o aniversário do amigo Videira, que se comemorou num domingo de outubro de 1989, em que meia dúzia de companheiros, do ISEC e da FCTUC, rumavam para o “Ágora” e que em plena rua da Sofia encontram-se, acidentalmente, com meia dúzia de companheiras, estudantes da FLUC e da FDUC, que também iam comemorar o aniversário de uma delas e que após uma breve abordagem e um ainda mais breve convite, acederam a comemorarem os dois eventos em comum. Aquela dúzia de jovens que na flor da vida se juntaram para comemorarem dois aniversários em comunidade, ou melhor, em fraternidade, nunca imaginaram que iriam transformar aquele evento banal num acontecimento transcendental, que ficou registado nos anais das suas histórias pessoais.
Objectivamente, o “Ágora” era um espaço situado na baixa de Coimbra que pertencia a uma cooperativa de ensino artístico, em que, para além de ser uma galeria onde os alunos expunham as suas obras, possuía uma grande área de convívio aberta a todos e um pequeno bar ou cafetaria. Na realidade, o “Ágora” era um daqueles locais dignos de fazerem parte das esferas dos sonhos. A mística deste espaço devia-se às pessoas e aos seus feitos e tornava estes mesmos feitos, por mais banais que fossem, em eventos único, inesquecíveis, míticos.
Naquela chuvosa noite de outubro, doze jovens festejaram uma celebração conjunta de dois aniversários de uma forma única e inesquecível. Misturou-se seis vozes rudes e desafinadas com seis vozes cristalinas dos seis anjos femininos, cantando várias melodias ao som de um violão tocado por uma bela venezuelana do curso de Direito, conseguindo-se assim uma polifonia de três continentes, tornando possível naquele pequeno lapso temporal a tão desejada fraternidade universal, que só está ao alcance de quem está na primavera das suas vidas. O que se passou a seguir, quando saíram do “Ágora”, pertence à esfera privada e ficará na memória de cada um daqueles doze até ao fim da vida.


Passados quase vinte e cinco anos, numa bonita noite de verão, esta recordação desabou, mais uma vez, na memória de António. Estava a fumar um cigarro e a admirar as estrelas, muito longe de Coimbra e muito distante daqueles bons tempos, mas voltou a sentir a chuva a cair, voltou a sentir o aconchego do “Ágora”, sentiu-se rodeado daqueles seis amigos de sempre e dos seis anjos que surgiram das nuvens. Mais uma vez sentiu o calor humano daquela época, mais uma vez ouviu as mesmas melodias, cantadas pelo mesmo coro angelical. Regressou ao tempo do idealismo da liberdade, igualdade e fraternidade, que é próprio dos verdes anos e propício em lugares míticos como Coimbra. O cigarro apagou-se. António retornou ao presente, mas continuou a venerar as estrelas. O presente vive-se e ao passado presta-se culto. Acende mais um cigarro, continua a venerar as estrelas e a recordar o passado, uma vez mais.

sábado, 12 de junho de 2010

A Guerra no Montanha





António sempre foi um amante da noite. Ainda era criança e já sentia um fascínio pelos mistérios que a noite encerrava, principalmente porque não a frequentava, ou seja, as noites passava-as em casa. Mesmo assim, tentava, sempre que podia, desvendar esses mistérios a ouvir um programa de rádio nocturno, a assistir um programa de TV pela noite dentro, ou, simplesmente, a espreitar o mundo exterior e noctívago da janela ou do terraço da casa. Quando passou, já adolescente, a viver a noite, um outro mundo, misterioso e mítico, abriu-se para ele desbravar e ainda hoje esconde muitos segredos.

Das suas inesgotáveis aventuras nocturnas, António recorda-se de uma em particular que, apesar de simples, que passou-se numa ocorrência histórica: a 1ª Guerra do Golfo. Como todos sabem, no verão de 1990 o Iraque do malogrado Sadam Hussein invadiu o Kuwait e uma coligação de países, liderados pelos E.U.A., preparou-se para lhe fazer frente. António, como toda a gente, sabia que naqueles primeiros dias de 1991, em pleno inverno, o ataque era iminente mas sem nenhuma certeza de uma data em concreto. Numa certa noite, como de rompante, estoura nos noticiários a operação militar que ficou conhecida pelo seu nome de código: “Tempestade no Deserto”. Foi dessa mesma noite que António guardou para sempre na sua memória uma boa sensação de liberdade, de camaradagem e de paz, apesar de os tempos serem de guerra.

A partir do início da “Tempestade no Deserto” a evolução dos acontecimentos e o propagar das notícias ganhou uma velocidade estonteante, produzindo-se tantos factos históricos em tão curto espaço de tempo que era extremamente difícil assimilá-los ou analisá-los com um sentido crítico. E a oportunidade de, pela primeira vez, assistir em directo e a cores uma guerra real tornou-se uma obsessão para muita gente e também para António. Então, há que consumir toda a informação disponível e em tempo real. Para isso, dirigiu-se para o café “Montanha”. O “Montanha” era um café / snack-bar agradável e acolhedor, que António costumava frequentar sozinho ou acompanhado de colegas e que tinha duas grandes vantagens: era muito próximo da sua residência em Coimbra e só costumava fechar às duas horas da madrugada. Nessa gloriosa noite, António e o seu colega Adérito, juntamente com o dono do estabelecimento, prolongaram, à porta fechada, o horário até próximo da quatro horas da manhã, assistindo ávidos aos noticiários ininterruptos da RTP, relacionados com a guerra. Depois de alguns petiscos e muitas cervejas lá chegou o sono e foram todos dormir. Ao sair do café e a caminho de casa, as ruas vazias e silenciosas, a lua e as estrelas a brilharem no firmamento, a brisa nocturna fria e constante, fizeram com que António sentisse, mais uma vez, o apelo da noite e o seu aconchego pacífico e libertador.

Muitos anos e algumas guerras depois, António continua a recordar a noite que estourou a guerra, a sua primeira guerra, que assistiu em paz e sossego. Numa certa noite, ao preparar um café para uma curta pausa no trabalho, regressou àquela noite, àquela guerra, àquele “Montanha”, voltou a ouvir as mesmas notícias, fez os mesmos comentários, voltou a discutir os mesmos assuntos, voltou a ter, de novo, vinte e poucos anos e continuou a ser livre. Voltou à mesma paz em tempos de guerra e regressou às mesmas ruas desertas e silenciosas sob o brilho dos astros. A cafeteira fez barulho, o café ficou pronto, o presente é o presente, uma pequena pausa e o trabalho a seguir. O passado passou. Mas vai regressar, em breve…

segunda-feira, 28 de julho de 2008

As Curvas da Saudade

António é, desde alguns anos à esta parte, um ser humano em perfeita harmonia com o cosmos e consigo mesmo. Não tem dúvidas sobre aquilo que gosta nem sobre aquilo que não gosta, não tem desvios quanto à sua personalidade e identidade, não tendo dúvidas existenciais, encontra-se bem definido (para o melhor e para o pior): é, com convicção, racional, científico-tecnológico, benfiquista, republicano e socialista. A sua cabeça é o seu guia, não embarcando em teorias da moda nem em pensamentos comuns, tendo muitas vezes divergências com os mais próximos, por ser um tanto ao quanto fracturante e “ovelha negra”.
Quando quase toda a gente afirma preferir o Verão ou a Primavera ao Inverno ou Outono, António não tem preferências no que toca a estações do ano: adora todas elas. Venera as tardes curtas e húmidas do Outono e os seus sabores e cheiros característicos, os dias frios e nublados do Inverno e as suas manhãs límpidas e gélidas, os radiosos dias da Primavera e as suas tardes amenas e o esplendor do Verão e as suas noites quentes e acolhedoras. Tudo isso porque tudo na vida tem o seu tempo próprio: os magustos com as suas castanhas e vinho novo, as conversas à volta da lareira com um chouriço a assar nas brasas, os convívios à volta de um queijo da serra e de uma garrafa de Dão, os grandes passeios à beira-mar no crepúsculo, as jantaradas ao ar livre regadas com vinho verde gelado; tudo no seu tempo certo, na sua altura própria, com os seus sabores, cheiros e aromas típico e tonalidades apropriadas.
O mês de Dezembro do ano de 1991 estava quase a chegar ao seu termo. A vida académica de António entrava na recta final, sendo o novo ano de 1992 decisivo. As aulas já tinham terminado e estava tudo preparado para a quadra do seu último Natal como estudante a passar na sua aldeia. Inesperadamente, um colega de turma, daqueles que António tinha pouca convivência e que hoje nem se recorda do nome, oferece-lhe boleia no seu carro, visto que eram quase conterrâneos. Era uma oferta bem-vinda, pois sempre se poupava o dinheiro do bilhete de autocarro. Ao meio da tarde partiram de Coimbra, fazendo-se ao caminho tomando a estrada de Penacova. A tarde estava nublada, com uma temperatura amena para um dia de inverno e António encontrava-se bem-disposto, bem almoçado e confiante, conseguindo conversar toda a viagem com aquele colega de poucas falas. Foi uma viagem simples e como simples é António, ficou sempre na sua memória, pelo tempo agradável, pela companhia inesperada e sobretudo pelo panorama magnífico da sua “estrada de Penacova”.
Naquele tempo, a “estrada de Penacova” era o caminho mais utilizado para quem se dirigia para o distrito de Viseu, sendo um troço sinuoso de 20 quilómetros, com quase 100 curvas. António conhecia-a bem, visto que fazia parte do itinerário do expresso que fazia a ligação de Coimbra à sua aldeia. Não sendo um troço muito agradável para quem como ele que muitas das vezes viajou de pé, devido o número de passageiros exceder a lotação do autocarro, e com o elevado número de curvas, e mesmo sendo o último troço da viagem, normalmente chegava enjoado ou mesmo agoniado à Coimbra. No entanto, como para algumas pessoas (António incluído) os momentos de maior dificuldade são aqueles que são mais facilmente recordados, porque são nesses momentos que se sabe quem são os heróis, este troço sinuoso com o majestoso Mondego ao seus pés é sempre recordado com saudade. Hoje, já com mais de 40 anos de idade, António sempre que se dirige à Coimbra e mesmo com uma boa auto-estrada à sua disposição, sai da mesma e faz o último troço da viagem pela difícil, porém nostálgica “estrada de Penacova”. Mas agora é diferente. Vai na sua própria viatura e para uma ou duas vezes na estrada e entra em meditação. Contempla a vertigem da paisagem, com as serras em frente e o Mondego ao fundo, o silêncio absoluto, a explosão do verde das matas, a sensação de ser engolido pelo vale profundo e de fazer parte dele e sobretudo recorda os maus e bons momentos das muitas viagens que por ali fez e dos cinco melhores anos da sua vida que foram passados no seu querido instituto e na sua amada Coimbra.
Passados mais de quinze anos que deixou de viver em Coimbra, António ouviu uma conversa de uns amigos que relataram uma descida do Mondego em canoa, de Penacova até Coimbra. Prometeu a si mesmo, logo que fosse possível, havia de realizar a mesma aventura, de preferência sozinho, sem pressas, para meditar e recordar, para contemplar e prestar culto ao rio, ao vale, à serra, às matas, à sua mocidade e à estrada mais bonita do mundo: a sua “estrada de Penacova”. Mentalmente, esta descida do Mondego em canoa já teve efeito numa noite de verão, António no meio do rio, nas profundezas do vale, pára de remar, deixa a canoa ao sabor da corrente e integra-se, faz parte de tudo, é mais uma gota de água, é mais um pinheiro, é mais uma rocha. Desaparece. Torna a aparecer quando toca o despertador.

sábado, 12 de abril de 2008

A Tarde da Apicultura

Como muitos devem saber, o inverno em Coimbra não é particularmente rigoroso, comparado com o que se faz sentir noutras regiões de Portugal. Não é um inverno extremamente frio nem excessivamente chuvoso, para António é apenas um inverno fantástico. Sempre gostara das manhãs frias e das tardes quentes e solarengas do inverno coimbrão. Mas também gostava dos dias chuvosos, mais para estar debaixo de telha do que para andar pelas ruas. No entanto, foi uma tarde chuvosa de Janeiro, em que passou a maior parte das horas em trânsito, que guarda na sua prodigiosa memória de uma forma especial.
O dia amanheceu chuvoso. Já era o terceiro dia de aguaceiros. António como era a sua rotina levantou-se cedo e foi para o instituto, como sempre tomou o seu café no bar da associação de estudantes e lá foi para as aulas sem tomar mais nada no pequeno-almoço. Só muito mais tarde, já quase no fim do curso, é que tomou consciência do quanto era saboroso e saudável tomar, na cantina do instituto, um pequeno-almoço completo por uma ninharia de 50 escudos e não o fez desde o primeiro ano só por uma questão de preguiça, bastando para si e até ao almoço a sua dose matinal de cafeína. Era uma quarta-feira e só tinha aulas da parte da manhã. Normalmente, e naquele seu terceiro ano, tirava a tarde para estudar, adiantar algum assunto escolar ou para redigir os relatórios das disciplinas laboratoriais no computador do seu amigo e colega de grupo, o Camilo. O Camilo era trabalhador estudante, mais propriamente um jovem agricultor que para além de outras actividades agrícolas, dedicava-se à apicultura e visto que tinha rendimentos próprios, era um dos poucos privilegiados que possuía um PC em casa, o que não dependia de esperar por uma vaga na sala de informática do instituto, podendo trabalhar a qualquer hora do dia ou da noite. Nesta tarde chuvosa, a rotina de sempre: almoço, café e digestivo, redacção de relatórios, jogatana no PC, jantar, café e digestivo, telenovela, trabalho e/ou jogatana no PC e, já noite dentro, uma sessão de vídeo foi quebrada. – Olha lá ó António - disse Camilo -, não me queres ajudar a carregar umas colmeias que vou comprar? De pronto, António acedeu ao convite e lá foram no carro do Camilo até à uma loja de apicultura situada na zona de Celas. Depois do trabalho previsto e já arrumadas as colmeias na mala do carro é que a grande maratona daquela tarde começou, indo os dois a um café próximo tomar o seu cafezinho e digestivo (agora, Macieira em vez de bagaço, porque um dia não são dias…) que naquela tarde chuvosa e naquele café estranho souberam de um forma especial. Depois lá foram os dois, por sugestão de António, até a um outro café, próximo da faculdade de economia, admirar as estudantes da faculdade. Tomaram uma cerveja, apreciaram a paisagem humana, constataram que a maré não estava para peixe e foram-se embora. Ainda passaram numa livraria no Calhabé e compraram um livro técnico da especialidade, que nem sabiam que existia, antes de se encontrarem com o Adérito, um outro colega e camarada. À noite, não jantaram na cantina, foram a uma casa de pasto na zona da baixa que costumavam frequentar, tomaram na rua da Sofia o afamado “Leite de Onça”, licor de origem brasileira e inevitavelmente, foram a um clube de vídeo, alugaram umas cassetes VHS e acabaram a noite com um tradicional sessão de filmes, regada agora com aguardente caseira do Camilo. Terminou a “tarde de apicultura” que de apicultura só teve meia hora… Mas afinal o que é que uma tarde de copos pode ter de nostálgico? Para António, as passagens mais simples da vida são aquelas que merecem uma maior importância. Só por serem simples, como ele é e como a vida pode e deveria ser. Passados muitos anos, António associa esta tarde de Janeiro aos versos de uma canção dos GNR’s : “Tarde de chuva / Península inteira a chorar…” e sempre que ouve a canção, lembra-se daquela tarde. O contraste da chuva fria com o brandy quente, o desafio de andar debaixo de chuva quando podia-se estar no aconchego da casa e o emendar a tarde com a noite, quebrando a rotina por um dia, transformam momentos vulgares em magia pura. Isso, para António, claro. Hoje, passado mais de quinze anos, António mantém o hábito do café mas perdeu o do digestivo e por norma não bebe quando está a conduzir. No entanto, numa chuvosa tarde, não de Janeiro mas de Dezembro, não em Coimbra mas em outra cidade, António estava a tomar um café após ao almoço, não ouviu nenhuma canção, olhou para a janela a ver a chuva a cair e não resistiu. Pediu um brandy Macieira, entrou na máquina do tempo, tomou os seus comandos, ajustou os aparelhos e regrediu dezasseis anos no tempo. Mas voltou, quando acabou o brandy.

A Praia do Telhado

No início do mês de Julho daquele já longínquo ano de 1991 António estava a terminar o 3º ano do curso e, como é típico em Coimbra, nessa altura do ano, estava um calor abrasador. Emocionalmente, estava a passar por uma fase estável, já estava perfeitamente integrado na cidade e no sistema de ensino, considerando-se um estudante profissional e de sucesso e namorava há uns meses com Laurinda, uma estudante de contabilidade e administração. Numa certa sexta-feira, na casa dela, em plena Alta de Coimbra, ajudava-a a fazer o saco de viagem, já que ia passar o fim-de-semana à casa, enquanto António ficava a estudar para um último exame.
A janela do seu quarto dela dava para o pátio da casa de uns amigos que António tinha na universidade, alunos de Geologia. Neste pátio, situado no interior do prédio, tinha sido construído um anexo que dava ao proprietário mais três quartos para alugar a estudantes, cujo telhado era acessível recorrendo a um pequena escada. A uma dada altura, três destes amigos lembraram-se de subir ao telhado do anexo em calções de banho e levando com eles um mangueira de água e mesmo ali improvisaram uma praia, deitando-se nas toalhas que colocaram sobre as telhas quentes, molhando-se uns aos outros. António teve um primeiro impulso de ir ter com eles, tirar a roupa e deitar-se naquela praia surrealista. Mas não o fez. Não o fez porque estava acompanhado e sabia que a reacção de Laurinda não seria boa. Foi leva-la à estação, despediu-se dela e ainda lhe passou pela cabeça ir ter com os seus amigos. Mas não o fez. Por inércia e por preguiça. No entanto, imaginou que lá tinha ido ter com os seus colegas e se deitou nas telhas quentes, levou com a água fria da mangueira e conversou com eles. Sentiu uma sensação boa de liberdade, de juventude e de paz. António não esteve lá fisicamente, mas esteve plenamente em espírito.
Passados alguns dias, encontrou-se com o Michel, um dos seus amigos que estiveram a tomar banho no telhado e este declarou que não tinha sido a primeira vez que se lembravam de experimentar tomara banho na “Praia do Telhado”. –Sabes bem, António, – referiu o Michel – que custa muito ficar amarrado a estudar, enquanto outros põe a toalhinha às costas e vão à praia ou à piscina! Ao menos, atenuamos o vício, apanhando sol no telhado… Hoje, António, já com mais de 40 anos de idade recorda-se perfeitamente desses tempos, onde tudo parecia tão simples. Não posso ir à praia, então dispo-me e deito-me num telhado a apanhar sol. E pensar que os problemas que surgiram nesses tempos, parecem hoje de tão simples resolução e até mesmo tão patéticos. Tudo se resolvia e tudo podia se resolver. Por vezes, em certas horas (boas ou más) António imagina-se deitado naquele telhado quente, naquele fim de tarde de Julho e sente uma grandiosa paz de espírito. Volta a ter vinte anos. Sente-se livre. António não esteve lá, mas ficou por lá. Esta “Praia do Telhado” é uma das muitas âncoras que António não quis retirar do passado, sendo, todavia, uma das âncoras mais pequenas. As telhas continuam quentes, mas o sol já se pôs no horizonte. Segue-se a noite. António recolhe a toalha, desce do telhado e volta para a sua casa.